O jovem ator tem que aprender que seu
trabalho se dá num campo de insegurança total. Se tiver consciência crítica
saberá lidar com isso. No nosso trabalho, ninguém vai feito um trem. Com o
poeta, o escritor, ocorre o mesmo. Flaubert, a cada semana, cortava palavras,
escrevia, reescrevia, refazia quarenta, cinqüenta linhas. O ator que chega no
ensaio dizendo “Eu já sei”, esse ator se fodeu. Com o perdão da palavra. Cansei
de ouvir isso: “Mas eu já decorei!”. Decorou o quê? Você vai decorar Teatro?
Tinha uma bilheteira do tempo do TBC,
que quando telefonavam para fazer uma reserva, e perguntavam se o espetáculo
estava indo bem, ela dizia: “Olha, já decoraram a peça”.
Tem muita escola de teatro que ajuda
a difundir essa visão. São cursos que encantam não sei quantos jovens,
iludidos, desgraçados, pagando aulas de Teatro. A cada ano, quantos alunos
ditos “formados” saem dessas escolas? E o Sindicato faz questão de dar a
carteira que confirma esse ponto de vista: você paga e é registrado como ator.
Os donos de escola, esses canalhas atuais, que fazem do Teatro uma moldura de
televisão, deveriam se envergonhar. Ensinam a falsa segurança de uma listagem
de expressões fixas e comportamentos emocionais padronizados. Você sabia que na
Itália, na época do fascismo, existia uma máquina fotográfica parecida com
isso: você ia lá, fazia quarenta fotografias com expressões como dor, alegria,
gozo etc.?
Contra esse imobilismo mentiroso, o
teatro sério tem que reconquistar uma agressividade permanente. Para trabalhar
com a vida real do Teatro, para vencer todos os obstáculos, culturais,
políticos, e de sensibilidade, você tem que ser agressivo. Agressivo não
significa matar ninguém, mas estar pronto para atacar uma idéia. A agressão
pode ser uma coisa positiva.
O Teatro pede de você uma
disponibilidade definitiva. Ele exige de você uma dedicação total. Nas minhas
próximas almas, nos meus próximos amanheceres, estarei sempre disponível. Ou
você é disponível ou não é. Disponibilidade significa que você tem que se
entregar para uma luta financeira, técnica, que envolve a totalidade da sua
vida. Existem propagandas dessas casas de comércio que vendem a idéia de uma
dedicação total. Mas, dedicação total a quê? À compra e venda de mercadorias.
Não a dedicação a uma idéia, a um ofício. Eu acho que o Teatro é uma Idéia, uma
grande Idéia. Posso até me submeter a pequenas concessões para não me desviar
dessa descoberta. Mas você não pode namorar vinte mulheres ao mesmo tempo
porque, infelizmente, só tem um pau. O Teatro é exatamente igual ao amor, se
você acredita nele, tudo bem. Por que eu estou fazendo teatro até hoje? O que
eu trabalhei em teatro não é brincadeira, foi dos quinze anos em diante.
Setenta anos de trabalho. É verdade: no bem, no mal, no êxito, no fracasso, no
ganho, no deficit. Mas é Teatro o que eu tenho que fazer.
O Teatro é isto: você tem que ter a
pachorra. É ruim o espetáculo? Uma porcaria? Ou você avaliou que é bom? Não,
não é bom... porém você está lá? Então vai. Não é questão de paixão romântica,
mas uma confirmação permanente de algo que faz viver. Não sei se estou certo,
mas estou falando o que eu sinto.
Para mim, o Teatro é a grande
aventura. Nela tomam parte os condutores dos povos, os Júlio César, os
Coriolano, mas existem também os soldadinhos. E é entre esses trabalhadores que
habitam as pequenas salas, esses jardins de catacumbas, que você pode encontrar
realmente as descobertas. Porque Júlio César se formou, está pronto, está
feito. É uma imagem acabada. São tristes os atores que se consideram modelos
realizados. O sujeito faz oitenta anos, continua atuando em espetáculos, tem um
técnica interpretativa fantástica (afinal são tantos anos de trabalho) mas o
que sobra dele é a mediocridade humana, a sovinice permanente.
Um diretor francês do passado
escreveu a uma jovem atriz: “Você começou agora, está tendo muito sucesso, seu
trabalho é esplêndido, mas e quando seu rosto ficar envelhecido, como é que
você vai fazer Julieta?” Esta pequena aula de duzentos anos atrás continua
válida: então você vai continuar tentando segurar a idéia da Julieta enquanto
seu rosto envelhece?
O ator é aquele que atravessa o
processo de mudança. Porque o Teatro de hoje não é mais o Teatro de ontem. De
que serve a grande técnica se a atriz ficou ressequida, se a vida sugou dela
tudo de que ela precisava? É um jogo terrível: o Teatro é um fenômeno de
crueldade definitiva, é um estupro permanente. E é preciso se pôr em movimento
pela descoberta permanente, ter a avidez de aprender, de receber para poder
devolver. O Teatro também é isso: dar e devolver, dar e devolver, dar e
devolver, até o momento no qual os dois se juntam para fazer uma coisa só - que
é o grande tema da vida.
Depois de um período de morte, de
sono, de sonolência, o Teatro no Brasil parece que despertou. Está manifestando
de forma muito mais categórica, mais violenta, mais agressiva, no bom sentido
da palavra, uma presença dramatúrgica muito forte. Em grupos, como no caso dos
seis que se reúnem para esse jornal, isso me parece muito evidente.
Importa não esquecer a pergunta do
ponto de partida: o que te interessa dentro da Arte? Para mim, é a presença do
homem. Buscar o ser humano. Têm pessoas cuja falta de humanidade não interessa
mais.
Gianni Ratto é
cenógrafo e diretor de teatro, de origem italiana.É um dos mais ativos e
críticos trabalhadores do teatro brasileiro. Este depoimento foi dado a Márcio
Marciano e Sérgio de Carvalho
FONTE - JORNAL "O SARRAFO" Nº1 - março de 2003
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