O Teatro é
um fenômeno oscilante, permanentemente oscilante. Vive processos de ascensão
criativa, com subidas e mais subidas até que, de repente, ele entra num
declive, ou despenca. Mesmo os grandes grupos têm uma vida breve, de seis,
sete, oito anos. Poucos, milagrosamente, permanecem por mais tempo. É como nos
outros fenômenos de vida: o Teatro nasce, cresce, se define e morre. É esse seu
processo real. E por estar em transformação constante, o Teatro é um lugar de
insegurança.
O jovem ator tem que aprender que seu trabalho se dá num campo de insegurança total. Se tiver consciência crítica saberá lidar com isso. No nosso trabalho, ninguém vai feito um trem. Com o poeta, o escritor, ocorre o mesmo. Flaubert, a cada semana, cortava palavras, escrevia, reescrevia, refazia quarenta, cinqüenta linhas. O ator que chega no ensaio dizendo “Eu já sei”, esse ator se fodeu. Com o perdão da palavra. Cansei de ouvir isso: “Mas eu já decorei!”. Decorou o quê? Você vai decorar Teatro?
Tinha uma
bilheteira do tempo do TBC, que quando telefonavam para fazer uma reserva, e
perguntavam se o espetáculo estava indo bem, ela dizia: “Olha, já decoraram a
peça”.
Tem muita
escola de teatro que ajuda a difundir essa visão. São cursos que encantam não
sei quantos jovens, iludidos, desgraçados, pagando aulas de Teatro. A cada ano,
quantos alunos ditos “formados” saem dessas escolas? E o Sindicato faz questão
de dar a carteira que confirma esse ponto de vista: você paga e é registrado
como ator. Os donos de escola, esses canalhas atuais, que fazem do Teatro uma
moldura de televisão, deveriam se envergonhar. Ensinam a falsa segurança de uma
listagem de expressões fixas e comportamentos emocionais padronizados. Você
sabia que na Itália, na época do fascismo, existia uma máquina fotográfica
parecida com isso: você ia lá, fazia quarenta fotografias com expressões como
dor, alegria, gozo etc.? Contra esse imobilismo mentiroso, o teatro sério tem
que reconquistar uma agressividade permanente. Para trabalhar com a vida real
do Teatro, para vencer todos os obstáculos, culturais, políticos, e de
sensibilidade, você tem que ser agressivo. Agressivo não significa matar
ninguém, mas estar pronto para atacar uma idéia. A agressão pode ser uma coisa
positiva. O Teatro pede de você uma disponibilidade definitiva. Ele exige de
você uma dedicação total. Nas minhas próximas almas, nos meus próximos
amanheceres, estarei sempre disponível. Ou você é disponível ou não é.
Disponibilidade significa que você tem que se entregar para uma luta
financeira, técnica, que envolve a totalidade da sua vida. Existem propagandas
dessas casas de comércio que vendem a idéia de uma dedicação total. Mas,
dedicação total a quê? À compra e venda de mercadorias. Não a dedicação a uma
idéia, a um ofício. Eu acho que o Teatro é uma Idéia, uma grande Idéia. Posso
até me submeter a pequenas concessões para não me desviar dessa descoberta. Mas
você não pode namorar vinte mulheres ao mesmo tempo porque, infelizmente, só
tem um pau. O Teatro é exatamente igual ao amor, se você acredita nele, tudo
bem. Por que eu estou fazendo teatro até hoje? O que eu trabalhei em teatro não
é brincadeira, foi dos quinze anos em diante. Setenta anos de trabalho. É
verdade: no bem, no mal, no êxito, no fracasso, no ganho, no deficit. Mas é
Teatro o que eu tenho que fazer.
O Teatro é
isto: você tem que ter a pachorra. É ruim o espetáculo? Uma porcaria? Ou você
avaliou que é bom? Não, não é bom... porém você está lá? Então vai. Não é
questão de paixão romântica, mas uma confirmação permanente de algo que faz viver.
Não sei se estou certo, mas estou falando o que eu sinto. Para mim, o Teatro é
a grande aventura. Nela tomam parte os condutores dos povos, os Júlio César, os
Coriolano, mas existem também os soldadinhos. E é entre esses trabalhadores que
habitam as pequenas salas, esses jardins de catacumbas, que você pode encontrar
realmente as descobertas. Porque Júlio César se formou, está pronto, está
feito. É uma imagem acabada. São tristes os atores que se consideram modelos
realizados. O sujeito faz oitenta anos, continua atuando em espetáculos, tem um
técnica interpretativa fantástica (afinal são tantos anos de trabalho) mas o
que sobra dele é a mediocridade humana, a sovinice permanente. Um diretor
francês do passado escreveu a uma jovem atriz: “Você começou agora, está tendo
muito sucesso, seu trabalho é esplêndido, mas e quando seu rosto ficar
envelhecido, como é que você vai fazer Julieta?” Esta pequena aula de duzentos
anos atrás continua válida: então você vai continuar tentando segurar a idéia
da Julieta enquanto seu rosto envelhece? O ator é aquele que atravessa o
processo de mudança. Porque o Teatro de hoje não é mais o Teatro de ontem. De
que serve a grande técnica se a atriz ficou ressequida, se a vida sugou dela
tudo de que ela precisava? É um jogo terrível: o
Teatro é um fenômeno de crueldade definitiva, é um estupro permanente. E é preciso se pôr em movimento pela descoberta permanente, ter a avidez de aprender, de receber para poder devolver. O Teatro também é isso: dar e devolver, dar e devolver, dar e devolver, até o momento no qual os dois se juntam para fazer uma coisa só - que é o grande tema da vida.
Teatro é um fenômeno de crueldade definitiva, é um estupro permanente. E é preciso se pôr em movimento pela descoberta permanente, ter a avidez de aprender, de receber para poder devolver. O Teatro também é isso: dar e devolver, dar e devolver, dar e devolver, até o momento no qual os dois se juntam para fazer uma coisa só - que é o grande tema da vida.
Depois de um
período de morte, de sono, de sonolência, o Teatro no Brasil parece que
despertou. Está manifestando de forma muito mais categórica, mais violenta,
mais agressiva, no bom sentido da palavra, uma presença dramatúrgica muito
forte. Em grupos, como no caso dos seis que se reúnem para esse jornal, isso me
parece muito evidente. Importa não esquecer a pergunta do ponto de partida: o
que te interessa dentro da Arte? Para mim, é a presença do homem. Buscar o ser
humano. Têm pessoas cuja falta de humanidade não interessa mais.
Gianni Ratto
é cenógrafo e diretor de teatro, de origem italiana.É um dos mais ativos e
críticos trabalhadores do teatro brasileiro. Este depoimento foi dado a Márcio
Marciano e Sérgio de Carvalho
FONTE -
JORNAL "O SARRAFO" Nº1 - março de 2003
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