sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

SOBRE O TEATRO COTIDIANO


Vocês , artistas que fazem teatro

Em grandes casas, sob sóis artificiais
Diante da multidão calada, procurem alguma vez
Aquele teatro encenado na rua.
Cotidiano, vário e anônimo, mas
Tão vívido, terreno, nutrido da convivência
Dos homens, o teatro que se passa na rua.










Aqui a vizinha imita o proprietário, deixa claro

Demonstrando sua verbosidade

Como ele busca desviar a conversa

Do cano d’água que arrebentou. À noite, nos parques

Rapazes mostram à garotas risonhas

Como elas resistem, e resistindo

Mostram habilmente os seios. E aquele bêbedo

Mostra o pastor em sua prédiga, remetendo

Os despossuídos

Aos ricos pastos do paraíso. Como é útil

Esse teatro, como é sério e divertido.

 E digno! Não como papagaios e macacos

imitam eles, apenas pela imitação em si, indiferentes

Ao que imitam, apenas para mostrar

Que sabem imitar bem; não, eles têm

Objetivos à frente.
Que vocês, grandes artistas
Imitadores magistrais, não fiquem nisso
Abaixo deles. Não se distanciem
Por mais que aperfeiçoem sua arte
Daquele teatro cotidiano
Cujo cenário é a rua.
Vejam aquele homem na esquina! Ele mostra

Como ocorreu o acidente. Neste momento

Entrega ele o motorista ao julgamento da multidão. como

Ele estava ao volante, e agora

Imita o atropelado, aparentemente

Um homem velho. De ambos transmite

Apenas o tanto para tornar o acidente inteligível, porém

O bastante para que apareçam claramente. Mas ele

Não mostra ambos como incapazes

De evitar um acidente. O acidente

Torna-se assim inteligível e também ininteligível,

pois ambos

Podiam fazer outros movimentos; agora ele mostra como

Eles poderiam Ter-se movimentado, para que o acidente

Não acontecesse. Não há superstição

Nessa testemunha, ele não vê

Os mortais como vítimas dos astros, somente

Dos próprios erros.

Notem também

Sua seriedade e o cuidado da sua imitação. Ele sabe

eu da sua exatidão muito depende: se o inocente

Escapa à ruína, se o prejudicado

É compensado. Vejam-no

A repetir o que já fez. Hesitante

Pedindo ajuda à memória, incerto

De que a imitação seja boa, interrompendo

Solicitando a um outro que

Corrija isso ou aquilo. Isto

Observem com reverência!

E com assombro

Queiram observar algo:

que este imitador

Nunca se perde em sua imitação. Ele nunca se transforma

Inteiramente no homem que imita. Sempre

Permanece o que mostra, o não envolvido ele mesmo.

Aquele

Não o instrui, ele

Não partilha seus sentimentos

Nem suas concepções. Dele sabe

Bem pouco. Em sua imitação

Não surge um terceiro, dele e do outro

De ambos formado, no qual

Um coração batesse e

Um cérebro pensasse. Ali inteiro

Está o que mostra, mostrando

O estranho nosso próximo.

a misteriosa transformação

Que supostamente se dá em seus teatros

Entre camarim e palco: um ator

Deixa o camarim, um rei

Pisa no palco, aquela mágica

Da qual com freqüência vi a gente dos palcos rir

Copos de cerveja na mão, não ocorre aqui.

Nosso demonstrador da esquina

Não é um sonâmbulo, a quem não se pode tocar. Não é

Um Alto Sacerdote no ofício divino. A qualquer instante

Podem interrompê-lo; ele lhes responderá

Com toda a calma e prosseguirá

Quando lhes tiverem falado

Sua apresentação.

Mas não digam vocês: o homem

Não é um artista. Erguendo uma tal divisória

Entre vocês e o mundo, apenas se lançam

Fora do mundo. Negasse ser ele

Um artista, poderia ele negar
Que fossem homens, e isto
Seria uma censura maior. Digam antes:
Ele é um artista, porque é um homem. Podemos
Fazer mais perfeitamente o que ele faz, e ser
Por isso festejados, mas o que fazemos
É algo universal, humano, a cada hora praticado
No burburinho das ruas, para o homem tão bom
Quanto respirar e comer.
Assim o seu teatro
Leva de volta às questões práticas. Nossas máscaras, digam
Nada são de especial, enquanto forem somente máscaras:




Ali o vendedor de xales

Põe o chapéu redondo de sedutor

Segura uma bengala, até um bigode

Cola sob o nariz, e atrás do seu balcão

Dá uns passos alegre

Indicando a vantajosa mudança que

Através de xales, bigodes e chapéus

Logram os homens. E nossos versos, digam,

Vocês também possuem: os vendedores de jornais

Gritam as manchetes em cadências, e assim

Intensificam o efeito e tornam mais fácil

A repetição constante! Nós

Falamos textos alheios, mas os namorados

Os vendedores também aprendem textos alheios, e com

que freqüência

Todos vocês citam ditados! Assim

Máscara, verso e citação tornam-se comuns, mais incomuns

A máscara vista com grandeza, o verso falado bonito

E a citação apropriada.

Mas para que nos entendamos: mesmo se aperfeiçoassem
O que faz o homem da esquina, vocês fariam menos
Do que ele, se o seu teatro fizessem
Menos rico de sentido, de menor ressonância
Na vida do espectador, porque pobre de motivos e
Menos útil.
Bertholt Brecht